As cirurgias fetais no Hospital das Clínicas (HC) começaram em dezembro de 2022, impulsionadas por uma portaria de fevereiro do mesmo ano que estabeleceu a infraestrutura e recursos necessários. Essa iniciativa permitiu a realização de cirurgias especializadas, como fotocoagulação a laser e correção de espinha bífida, visando melhorar o desenvolvimento fetal e aumentar as chances de sobrevivência. A motivação veio da equipe especializada em medicina fetal do HC, buscando proporcionar tratamento integral pelo SUS e eliminar barreiras financeiras para as famílias. Os planos futuros focam no aprimoramento da equipe e na incorporação de novas tecnologias, como a cirurgia robótica para procedimentos intrauterinos. Leia entrevista com a professora Alessandra Marcolin.
Quando a prática de cirurgias fetais foi iniciada no HC e qual foi o contexto para sua implementação?
A prática de cirurgias fetais no Hospital das Clínicas começou em dezembro de 2022, quando a primeira cirurgia fetal foi realizada com recursos e infraestrutura próprios. Essa implementação foi possível graças a uma portaria instituída pelo HC em fevereiro de 2022, que forneceu a estrutura e os recursos humanos necessários para a realização desses procedimentos. Nós precisávamos de instrumental, de aparelhagem que é cara que depende de manutenção constante cuidadosa e tem alguns materiais, que nós usamos nas cirurgias fetais, que são descartáveis e são muito caros. Nós precisávamos desse respaldo do HC para poder começar a fazer de maneira rotineira. Antes dessa data, pacientes que necessitavam de cirurgias fetais eram encaminhadas para outros serviços, em um processo que demandava esforço considerável das famílias e dos recursos do hospital, tanto do ponto de vista financeiro quanto emocional e físico. A decisão de iniciar as cirurgias fetais no próprio HC veio após anos de vontade e planejamento, tendo como objetivo reduzir o ônus para as famílias e melhorar o acesso a esses procedimentos especializados. Com essa medida, a gente tem feito, em média, duas cirurgias ao mês, e temos recebido pacientes de várias localidades, inclusive, fora do estado de São Paulo.
Quais os procedimentos de cirurgia fetal são realizados no HC e qual a importância de cada um?
No HC, são realizados diversos procedimentos de cirurgia fetal, cada um visando tratar condições específicas que podem afetar o desenvolvimento saudável do feto. Os procedimentos incluem:
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Fotocoagulação a laser para síndrome de transfusão feto-fetal: Utiliza-se um laser para interromper a comunicação anormal entre os vasos sanguíneos de gêmeos que compartilham a mesma placenta, prevenindo desequilíbrios no fluxo sanguíneo.
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Correção de espinha bífida (mielomeningocele): Uma cirurgia para corrigir defeitos na coluna vertebral do feto, reduzindo o risco de complicações neurológicas após o nascimento.
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Traqueo-oclusão para hérnia diafragmática congênita: Um procedimento para tratar fetos com hérnia diafragmática, melhorando as chances de desenvolvimento pulmonar saudável.
Outros procedimentos que também fazemos, mas que antecedem o início das cirurgias fetais mais complexas:
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Drenagem de fluidos: Inclui a drenagem de líquido pleural (nos pulmões) e de cistos abdominais ou pulmonares, aliviando a pressão e permitindo o desenvolvimento mais saudável do feto.
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Transfusões sanguíneas para anemia intraútero: Essencial para tratar fetos com anemia severa, garantindo o fornecimento adequado de oxigênio e nutrientes para o desenvolvimento fetal.
Qual foi a motivação para implementar as cirurgias fetais no HC?
A principal motivação para a implementação das cirurgias fetais no HC foi a existência de uma equipe altamente especializada e formada em medicina fetal, que via a necessidade e tinha o desejo de realizar esses procedimentos avançados localmente. Antes da implementação, a equipe sentia-se frustrada pela necessidade de encaminhar pacientes para outros serviços, o que não só dificultava o processo para as famílias envolvidas mas também limitava a capacidade de oferecer tratamento integral no próprio hospital. Além disso, havia uma forte vontade de tornar esses procedimentos acessíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS), eliminando barreiras financeiras para as famílias.
Quais são os benefícios das cirurgias fetais realizadas?
Os benefícios das cirurgias fetais realizadas no HC são significativos e variam de acordo com cada procedimento. Se elas não fizerem (a cirurgia), a criança com espinha bífida, vai nascer com comprometimento neurológico. O grau de comprometimento é maior em crianças que não são operadas. O primeiro trabalho que foi feito comparando crianças que são operadas com as não operadas é de 2011. Foi um estudo americano e que mostrou, já logo depois do nascimento, que as crianças operadas têm menor comprometimento neurológico. É importante falar que nem toda criança que tem espinha bífida é elegível para esta cirurgia. Mas entre as que têm os critérios para se beneficiar da cirurgia, realizar a cirurgia está associado a um menor comprometimento neurológico do que não realizar.
Para os casos de transfusão feto-fetal, a realização de cirurgia é bem documentada na literatura. Em um caso grave de transfusão feto-fetal, se não faz a cirurgia na idade gestacional correta, é quase 100% o risco de óbito das duas crianças.
Em relação à cirurgia da hérnia diafragmática, há um aumento de 25% na possibilidade de sobrevivência depois do nascimento de crianças que foram submetidas à cirurgia durante a gestação. Essas crianças nascem com o pulmão muito comprometido e com muita dificuldade respiratória, mas a cirurgia aumenta em 25% a chance de sobrevivência.
E no caso de anemia fetal severa, se você não faz a transfusão sanguínea intrauterina, este feto evolui para óbito. Então, a transfusão realmente é um dos procedimentos que salva essa vida.
Qual a importância de implementar o serviço aqui no HC?
Extremamente importante, porque primeiro existe uma equipe formada em medicina fetal que tem habilidade e conhecimento muito profundo de medicina fetal, que se sentia extremamente frustrada por não fazer esses procedimentos aqui. Então, hoje em dia, a gente faz tudo que é feito nos melhores serviços do mundo. Eu tive a formação em um serviço na Inglaterra, que é o melhor serviço do mundo. Quem cuida desse serviço é o professor Kypros Nicolaides, um professor grego que hoje em dia é um cidadão britânico. Ele fez a formação dele toda na Inglaterra, e ele é o chefe desse serviço, o melhor serviço em medicina fetal. Eu fiz a formação com ele lá, fiz meu doutorado lá, e a partir de então, eu coloquei na minha cabeça que eu ia trazer esse mesmo serviço que ele tinha lá para cá, pelo menos em termos de instrumental de infraestrutura.
E isso foi ao longo do tempo, nós fomos lutando bastante já que no Brasil a implementação de serviços de ponta não é fácil. Nós conseguimos implementar este serviço graças a grande ajuda do professor Ricardo Cavalli, que é um entusiasta dessas cirurgias. Nós conseguimos emendas parlamentares que foram essenciais para nos ajudar a comprar o instrumental necessário para estes procedimentos. Vários políticos ajudaram com emendas, nos fornecendo verba para tornar este sonho uma realidade, alavancando a implementação dessas cirurgias aqui no HC. Mas sem dúvida, a maior importância desta implementação é para as pacientes que necessitam destas cirurgias, porque antes elas tinham que se deslocar, era super difícil. Agora, elas têm a cirurgia aqui.
Eu acho muito importante que estas cirurgias estejam disponíveis no Sistema Único de Saúde, porque alguns serviços particulares são bem caros, por tudo que está envolvido na realização da cirurgia. E as nossas pacientes ficavam privadas dessas cirurgias, já que poucas pessoas no país podem pagar de 50.000 a 80.000 reais por uma cirurgia. E hoje em dia, a gente disponibiliza isso para a nossa paciente, sem o menor custo para elas. Então, para nós, é um sonho realizado, e para elas, um benefício enorme.
Quais são os planos futuros para a área de cirurgia fetal no HC?
Os planos futuros para a área de cirurgia fetal no HC incluem aprimorar a qualidade e a segurança dos procedimentos através do aperfeiçoamento contínuo da equipe, buscando capacitação e treinamento adicionais, tanto nacional quanto internacionalmente. Há também um forte desejo de expandir a equipe, trazendo mais especialistas para aumentar a capacidade do hospital de realizar essas cirurgias complexas. Além disso, há um interesse em incorporar novas tecnologias, como a cirurgia robótica adaptada para o ambiente intrauterino, visando minimizar os riscos e melhorar os resultados dos procedimentos.
Existem novidades tecnológicas na área de cirurgia fetal que ainda não estão disponíveis no HC?
Sim, uma das novidades tecnológicas mais promissoras na área de cirurgia fetal é o desenvolvimento de sistemas robóticos adaptados especificamente para procedimentos intrauterinos. Embora o HC já utilize algumas formas de cirurgia robótica, os sistemas necessários para cirurgias fetais requerem adaptações específicas para operar no delicado ambiente intrauterino. Essa inovação promete revolucionar a prática da cirurgia fetal, oferecendo procedimentos menos invasivos, com precisão aprimorada e potencialmente menos complicações. A equipe do HC está atenta a esses desenvolvimentos e busca incorporar essas tecnologias assim que se tornarem acessíveis, visando sempre melhorar a segurança e os resultados para as nossas pacientes.